Reação ao Artigo de Capa no Jornal Económico (2024/12/02): “Mudanças na rede de carregamentos elétricos ameaçam investimentos”

A peça jornalística que fez capa no Jornal Económico no dia 01/12/2024 sobre as mudanças na rede de carregamento de veículos elétricos infelizmente falhou em descrever o motivo pelo qual o executivo está a ponderar intervir no setor. Desta forma, o jornalista limitou-se a descrever a reação de algumas entidades, que têm sido as mais beneficiadas pelo status quo e que obviamente preferem a sua manutenção. 

A reação é excessivamente alarmista num momento em que ainda nem se conhecem concretamente as medidas a propor pelo executivo, nem há quaisquer indicações de que a intenção é abandonar (de forma total ou parcial) o modelo que vigora desde 2010 como sugerido na peça. No entanto, concordamos ser importante que o executivo anuncie o mais rapidamente possível estas medidas para que o mercado possa trabalhar com a serenidade que é necessária.

A AMME, Associação para a Modernização da Mobilidade Eléctrica, uma associação de utilizadores de veículos elétricos, tem sido das entidades mais críticas do modelo em vigor por considerar que este, não obstante o papel importante que teve no lançamento da mobilidade elétrica no país, é atualmente datado e castrador, mantendo-se preso a princípios de 2010 numa área que fervilha de evolução galopante. 

Essa crítica é cimentada em ações bem concretas, nomeadamente na elaboração e apresentação à anterior Tutela, ainda em março de 2023, de uma proposta concreta de alteração legislativa que permita aproximar a realidade nacional ao quadro jurídico da UE, já com o AFIR em perspetiva e ainda a mais de um ano da sua entrada em vigor. Essa proposta foi também apresentada à atual Tutela.

A posição da AMME foi sempre alinhada com a posição agora manifestada pela Dra. Cristina Pinto Dias: conservar ao máximo o bom trabalho que foi feito nos últimos 15 anos, mas também abrir espaço para o mercado inovar em linha com os restantes mercados europeus.

O motivo para intervir no carregamento de veículos elétricos

Sumariamente, os principais argumentos para a intervenção no regulamento jurídico da mobilidade são os seguintes:

  1. Alinhamento do quadro jurídico ao regulamento europeu AFIR em vigor em abril de 2024, facilitando tanto a entrada de operadores internacionais, como a expansão europeia de operadores nacionais.
  2. Estimular a inovação e o investimento privado na infraestrutura de carregamento, que é das mais desadequadas à frota circulante na Europa.
  3. Promover um mercado onde a tarifa praticada no ponto de carregamento inclua todas as taxas e impostos aplicáveis ao serviço de carregamento, de forma a facilitar a comparação de preços entre postos e promovendo a concorrência, tal como proposto pela Autoridade da Concorrência (link).

Opinião de outras entidades

A Autoridade da Concorrência (AdC) elaborou o Estudo “Concorrência e Mobilidade Elétrica em Portugal” onde elencou diversos problemas no modelo da rede pública de carregamento. Desse estudo resultou uma Consulta Pública cuja conclusão e contributos podem ser encontrados no site da AdC (link). É perfeitamente claro que uma grande fatia dos contributos não se alinha com a opinião da APOCME e da UVE sobre a manutenção do modelo atual. Os exemplos muito frequentemente apontados como bons serviços de carregamento, tais como os serviços da Tesla e Continente, resultam naturalmente da sua operação fora do modelo da rede pública de carregamento, potenciando dessa forma custos mais atrativos e uma experiência de utilização superior.

As muitas reuniões tidas pela AMME com diversos players presentes no mercado - e outros que manifestaram a intenção de vir a estar presentes, mas num modelo diferente do atual - reforçam este desalinhamento com a posição veiculada pela APOCME, apontando importantes falhas e limitações ao modelo atual, manifestando o desejo de ver presente um quadro diferente, mais liberalizado e em linha com o mercado Europeu.

Sugerimos uma leitura atenta ao referido Estudo, sua conclusão e demais contributos, uma vez que é a primeira oportunidade dada ao ecossistema de expor as suas opiniões. É possível confirmar facilmente que, há vários anos e sobretudo desde que a ME se tornou um assunto publicamente relevante, a vasta maioria das reportagens, entrevistas, eventos diversos, têm presentes os mesmos entrevistados/oradores, sem qualquer oportunidade para que outras visões sobre o tema pudessem ser explicadas e discutidas. A Consulta Pública da AdC veio trazer essa possibilidade ao ecossistema e este fez-se ouvir. 

Como o artigo do JE bem refere, a APOCME representa 5 das empresas presentes no ecossistema nacional de carregamento de veículos elétricos. Não obstante representarem uma fatia importante do mercado, estão longe de ser representativos da opinião de todos os players (32 CEME e 99 OPC - alguns players operam como CEME e OPC - listados no site da Mobi.e à data de 02/12/2024).

Após a publicação do Estudo da AdC a AVERE, uma importante Associação Europeia, manifestou a sua recomendação para que a legislação nacional fosse alterada (link) colocando-se em linha com o AFIR, considerando-os incompatíveis:

The current regulatory framework requires each CPO and/or MSP to enter into an greement with Mobi.E (...) constitutes a mandatory e-roaming regulation, which is incompatible with AFIR regulations (...)

Como se vai expor mais à frente a opinião dos utilizadores finais da rede de carregamento tem também sido ignorada em detrimento da opinião dos players.

Incompatibilidade do modelo atual com o regulamento Europeu AFIR

Contrariamente ao que muitas vezes é dito, o modelo atual da rede pública de carregamento não só não “serviu de base ao AFIR”, como é totalmente contrário ao espírito deste Regulamento Europeu que está em vigor desde abril de 2024. No passado julho de 2024 num evento da Tranport&Environment em Madrid sob o tema “E-Movilidad: Presente y Futuro” Kai Tullius, Responsável de Políticas da Comissão Europeia, foi orador numa apresentação com foco no AFIR e sua implementação, um evento onde a Mobi.e também esteve presente como orador. Da sua intervenção, achamos particularmente relevantes as seguintes afirmações (link):

“Os CPO e os eMSP não vendem eletricidade. Vendem um serviço de recarga. O serviço de recarga não é composto apenas por eletricidade, mas também a infraestrutura necessária para carregar o veículo no exterior a grande velocidade, em vez de carregar o veículo em casa em largas horas. Logo o CPO presta um serviço que vai muito para além do puro fornecimento de eletricidade.”

Esta afirmação é totalmente contrária ao modelo nacional - os CPO não podem sequer vender o "serviço de carregamento" em Portugal.

“Os CPO e eMSP não são atores dos mercados de eletricidade, não têm os mesmos papéis, obrigações, etc, estão basicamente fora dos mercados de eletricidade. [...] Os CPO compram eletricidade como um "input" para revender um serviço de carregamento ao consumidor. Se o consumidor usar um eMSP, o CPO vende o serviço de carregamento ao eMSP que, por sua vez, o revende ao consumidor.”

Mais uma vez, totalmente contrário ao modelo e legislação nacionais. O carregamento de VEs em Portugal está intimamente ligado ao setor elétrico e as únicas entidades com quem o Utilizador se relaciona são exatamente atores do mercado de eletricidade.


Finalmente, relativamente aquela que é indicada como a principal vantagem do modelo, a itinerância eletrónica, podemos mais uma vez socorrer-nos da CE e dos seus esclarecimentos sobre a implementação do AFIR (link). Logo no primeiro ponto abordado nestes esclarecimentos está exatamente o roaming obrigatório, e a posição da CE foi reiterada por Kai Tullius em Madrid (link), na presença da Mobi.e. A CE ponderou incluir no AFIR a itinerância obrigatória em todos os operadores na Europa, mas no final considerou que essa medida violaria a liberdade contratual dos CPO em definir com quem pretendem estabelecer relações de negócio. A CE aconselha os estados-membro a não colocar esta imposição, salvo uma falha de mercado.

Note-se que o AFIR não abandona o princípio de acesso simples a qualquer posto de acesso público, em alternativa impõe o cartão bancário como meio de pagamento universal em postos rápidos (>=50kW) e plataformas eletrónicas para postos lentos.

Os utilizadores de veículos elétricos são frequente e negativamente surpreendidos pelas faturas de carregamento

A AMME realizou 2 inquéritos a utilizadores de VE, cujas conclusões podem ser observadas nos documentos seguintes: (1) Novembro 2022, (2) Abril 2024. Um dos resultados-chave que também foi evidenciado pela AdC é que a estrutura tarifária dos serviços de carregamento é bastante complexa -- mesmo conhecendo as componentes de preço, o consumidor tem dificuldade em prever o que vai pagar sem o auxílio de aplicações. No estudo da AMME foi apresentada uma situação hipotética de simulação do valor de um carregamento, ao que 82,7% dos inquiridos afirmou não saber qual o valor final, enquanto apenas 0,7% chegou ao valor correto. É impossível haver concorrência em pleno se o consumidor não tiver acesso fácil à informação necessária para tomar uma decisão adequada. A maioria dos utilizadores não percebe como tomar uma boa decisão de consumo no modelo português, tanto que são necessários manuais para introduzir o utilizador ao modelo! 

É ainda possível afirmar claramente (ainda que com dados “sem nome” uma vez que a Mobi.e não publica o nome dos CEME mais utilizados) que a atual estrutura de preços favorece utilizadores mais informados em detrimento de outros (arriscamos a dizer, a maioria) que são prejudicados por pela composição obscura de preços. Dados recolhidos pela AMME em junho de 2024 (link) mostram que o custo de um carregamento pode variar grandemente de acordo com a combinação de CEME/posto/veículo:

modely daciae

Podemos inferir que, se o CEME mais usado em determinado período tiver (por exemplo) 30% das cargas e for esse o CEME mais vantajoso nesse período, existem então 70% de utilizadores que não estão a usar o melhor CEME e a pagar (muito) mais pelo mesmo serviço. Esta é uma realidade incontornável e, na opinião da AMME, totalmente inaceitável.

A criatividade das entidades consultadas pelo jornalista

Várias afirmações importantes carecem de dados que o comprovem, e não foram devidamente desafiadas pelo jornalista:

“O nosso modelo tem sido elogiado na Europa”. 

Não se conhece qualquer país que opere um modelo sequer semelhante ao nosso, nem nenhuma posição pública de qualquer intenção de o implementar. Note-se que não afirmamos que não possam existir tais intenções, mas nunca se viram discutidas no espaço público. Como tal, afirmar e usar como argumento esse suposto interesse é apenas falacioso.

Toda a Europa opera numa base técnica e legislativa equivalente, à excepção de Portugal. Portugal exige licenciamentos específicos e soluções técnicas que funcionam exclusivamente em Portugal e que afastam vários players do nosso mercado.

“As alterações que têm sido avaliadas irão provocar um retrocesso no desenvolvimento da mobilidade elétrica em Portugal (...) Não me parece que o Governo esteja a par das enormes consequências nefastas para o sector e para o cumprimento das metas que o AFIR obriga, e bem, os Estados-membros da União Europeia”, segundo o responsável.” 

É absolutamente impossível confirmar esta afirmação. Não há qualquer prova que o modelo atual contribua mais para o setor e para as metas do setor do que um mercado verdadeiramente liberalizado e tecnicamente homogéneo como o que se verifica em toda a Europa. Aliás, os dados do EAFO mostram claramente que Portugal, com o modelo exclusivo atual, se encontra totalmente na cauda da Europa no índice de disponibilidade da estrutura de carregamento como se pode confirmar no gráfico abaixo.

“Outra consequência será o fim dos DPC – Detentor de Posto de Carregamento, uma forma eficaz de separar consumos numa mesma infraestrutura, o que veio resolver inúmeros problemas dos condomínios e das empresas ao separar consumos e gerir plafonds atribuídos (no caso das empresas)”. 

Não é verdade que não seja possível a coexistência dos DPC com um modelo alternativo. Pelo contrário, como dito acima, é expectativa da AMME que a proposta de alteração preveja exatamente a coexistência do modelo atual e de uma alternativa futura.

“Mas as fontes do sector consultadas pelo JE apontam que foi precisamente este modelo que permitiu o disparo no crescimento de postos em Portugal, e no sucesso do carro elétrico,” 

Verifica-se uma tentativa de estabelecer uma relação de causa-efeito entre o modelo da rede pública de carregamento e crescimento da infraestrutura bem como com o sucesso da penetração do carro elétrico. É uma análise altamente enviesada:

  • sobre o crescimento da infraestrutura o gráfico abaixo (dados de junho 2024) mostra bem que outros países apresentam um crescimento significativamente superior e partilham entre si um modelo técnica e legislativamente equivalente, diferente do nacional. Se quisermos empregar afirmações falaciosas e que não podem ser comprovadas, no limite podemos até considerar que o modelo nacional é responsável pelo atraso no crescimento da infraestrutura;

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  • sobre o sucesso da penetração do carro elétrico, vale a pena relembrar que cerca de 85% dos VE são vendidos a empresas e ENI (Empresários em Nome Individual), aos quais são dados os maiores apoios fiscais da Europa e que permitem que o custo, ao fim de 4 anos, de um VE de 50.000€ se cifre em praticamente 50% do custo de um carro a combustão de 40.000€, ou até mais de 50% caso ambos os veículos tenham o mesmo preço de compra, como demonstrado nos quadros abaixo. Esta é uma realidade sem paralelo noutros países Europeus e, objetivamente, o grande impulsionador da penetração de VEs em Portugal:
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  • Há, inegavelmente, um vetor de um contributo da rede pública de carregamento, organizada como está até agora: o facto de ter sido totalmente gratuita até finais de 2018 e parcialmente gratuita até meados de 2020. Não se conhece em qualquer outro país europeu um período tão alargado de carregamentos gratuitos, suportados exclusivamente pelo Estado. Foram várias as entrevistas dadas pelo próprio Henrique Sanchez, presidente honorário da UVE, ao longo dos anos e em vários OCS e eventos em que participou, nas quais referia repetidamente o facto de não ter até à data e desde 2011, qualquer custo com o carregamento do seu VE na rede pública nacional.

É por esse motivo, na nossa opinião, um claro abuso tentar usar o modelo da rede pública como a razão destes sucessos quando na realidade não parece haver qualquer ligação plausível.

Conclusão

O artigo publicado no jornal económico ignora a essência do problema da rede pública de carregamento em Portugal. Embora o modelo atual tenha sido crucial na fase inicial da mobilidade elétrica, tornou-se um obstáculo ao desenvolvimento, dificultando a entrada de novos players, limitando a inovação e perpetuando uma estrutura tarifária confusa que prejudica os consumidores.

A proposta de revisão do modelo que se espera anunciada para breve visa alinhar o setor com as exigências do AFIR e os standards europeus, promovendo concorrência real e melhor serviço para os utilizadores. A manutenção do status quo não é sustentável nem benéfica para o progresso da Mobilidade elétrica em Portugal.

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